31/01/2016

Uma Criatura

"Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira do abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto arealum vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto,
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida;
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida."

 Machado de Assis









 P.S. Esse poema é tão realista, embora nos pareça que não, mas como Machado de Assis sempre escreveu de forma bem irônica sobre a vida e a morte, Deus e o Diabo, religião e ateísmo, enfim...Eu sempre gosto de pensar e sempre procuro o que mais me faz exercitar esse meu dom, dom de meditar sobre todas as situações na vida e porventura até em todas as situações em que se relaciona a morte,
Ah, Morte, embora seja tão temida, assim como Machado de Assis, também acho que mais temida é a Vida!

Ivone.